21 março 2011

O tempo oportuno

Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis - Exortamo-vos a não receber em vão a graça de Deus. Porque a graça divina pode encher as nossas almas nesta Quaresma, desde que não cerremos as portas do coração. Temos de ter estas boas disposições, o desejo de nos transformar realmente, de não brincar com a graça do Senhor.

Não gosto de falar de temor, porque o que move o cristão é o Amor de Deus, que se nos manifestou em Cristo e que nos ensina a amar todos os homens e a criação inteira; mas devemos falar de responsabilidade, de seriedade. Não queirais enganar-vos a vós mesmos: de Deus não se zomba, adverte-nos o mesmo Apóstolo.

É preciso decidir-se. Não é lícito viver tentando manter acesas, como diz o povo, uma vela a S. Miguel e outra ao Diabo. É preciso apagar a vela do Diabo. Temos de consumir a vida fazendo-a arder inteiramente ao serviço do Senhor. Se o nosso empenho pela santidade é sincero, se temos a docilidade de nos abandonar nas mãos de Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça de uma nova conversão, de uma melhoria da nossa vida de cristãos.

Não podemos considerar esta Quaresma como uma época mais, repetição cíclica do tempo litúrgico; este momento é único; é uma ajuda divina que é necessário aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.

Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc diessalutis: eis o tempo oportuno, que pode ser o dia da Salvação. Outra vez se ouvem os apelos do Bom Pastor, o carinhoso chamamento: Ego vocavi te nomine tuo. Chama-nos a cada um pelo nosso nome, com o nome familiar com que nos tratam as pessoas que nos amam. A ternura de Jesus por nós não cabe em palavras.

Contemplai comigo esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós, coloca-Se à beira do caminho, para que não tenhamos outra solução senão vê-Lo! E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também as suas, movendo a nossa consciência à compreensão, abrindo-a à generosidade, imprimindo na nossa alma o desejo de sermos fiéis, de podermos chamar-nos seus discípulos!

Basta ouvir essas palavras íntimas da graça, que são como que uma repreensão, tantas vezes afectuosa, para nos darmos conta de que não Se esqueceu de nós durante todo aquele tempo em que, por culpa nossa, nós não O vimos. Cristo ama-nos com o amor inesgotável que cabe no seu Coração de Deus.

Reparai na sua insistência: Ouvi-te no tempo oportuno, ajudei-te no dia da salvação. Já que Ele te promete a glória, o seu amor, e to oferece oportunamente, e te chama - tu que Lhe hás-de dar? Como responderás, como responderei eu também, a esse amor de Jesus, que passa?

Ecce nunc dies salutis - aqui está, diante de nós, este dia da salvação. O chamamento do Bom Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, Eu chamei-te, a ti, pelo teu nome! É preciso responder - amor com amor se paga - dizendo-Lhe Ecce ego quia vocasti me - chamaste por mim e aqui estou! Estou decidido a que não passe este tempo de Quaresma como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, querendo-Lhe como Ele deseja ser querido.

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, e com toda a tua mente Que resta do teu coração - comenta S. Agostinho - para que possas amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, da tua mente? Ex toto - afirma. “Totum exigit te, qui fecit te"; Quem te fez exige tudo de ti.

Após este protesto de amor, é necessário comportarmo-nos como amigos de Deus. In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros; comportemo-nos em tudo como servidores do Senhor. Se te dás como Ele quer, a acção divina manifestar-se-á na tua conduta profissional, no trabalho, num empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo Amor todas adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidores de Deus não é fácil. Continuemos a seguir o texto de S. Paulo que a Epístola deste Domingo recolhe, para recordarmos as dificuldades: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo - com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos cárceres, nas sedições, no trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus.

Nos mais diferentes momentos da vida, em todas as situações., havemos de comportarmo-nos como servidores de Deus, sabendo que o Senhor está connosco, que somos seus filhos. É preciso sermos conscientes dessa raiz divina, que está enxertada na nossa vida, e actuar em conformidade.

Estas palavras do Apóstolo deve encher-vos de alegria, porque são como que uma canonização da vossa vocação de cristãos correntes, vivendo no meio do mundo, compartilhando com os demais homens, vossos iguais, ideais, trabalhos e alegrias. Tudo isso é caminho divino. O que o Senhor vos pede é que a todo o momento actueis como filhos e servidores seus.

Mas estas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se realmente nos convertermos, se nos entregarmos. S. Paulo, na verdade, usa uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se tem desfigurado o Cristianismo quando se tem pretendido fazer dele um caminho cómodo! Mas também é uma desfiguração da verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de opressão ou de medo.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o egoísmo... O cristão conhece tudo e com tudo se enfrenta, cheio de inteireza humana e de fortaleza recebida de Deus.

(“Cristo que Passa”, cap.6 – “A conversão dos filhos de Deus”, S. Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei)

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