D. Estevão Bettencourt, Osb.,
Nº 531, Ano 2006, Página 394.
RELATIVISMO: QUE É?
Em síntese: O relativismo é uma corrente que nega toda verdade absoluta e perene assim como toda ética absoluta, ficando a critério de cada indivíduo definir a sua verdade e o seu bem. Opõe-se-lhe o fundamentalismo, que afirma peremptoriamente a existência de algumas verdades e algumas normas fundamentais... O indivíduo se torna o padrão ou a medida de todas as coisas. Tal atitude está baseada em fatores diversos, entre os quais o historicismo: com efeito a história mostra que tudo evolui e se tornam obsoletas coisas que em tempos passados eram plenamente válidas. A Igreja rejeita o relativismo, mas também não aceita o fundamentalismo: ao lado de verdades e normas perenes, existem outras, de caráter contingente e mutável. Ao cristão toca o dever de testemunhar ao mundo de hoje que a profissão d fé e a Moral católicas nada têm de obscurantista e de recusa dos autênticos valores da civilização contemporânea.
No fim do século passado manifestou-se com certa pujança o fenômeno do relativismo. Segundo esta corrente, o intelecto humano não pode alcançar a verdade como tal, mas apenas aspectos enquadrados dentro do subjetivismo de quem os professa. Essa relativização da Verdade e da Ética tem conseqüências de vasto alcance na vida moderna, de modo que lhe dedicaremos as páginas subseqüentes. Trataremos de apresentar as notas típicas do relativismo, suas causas e a atitude que cabe ao cristão assumir diante do problema.
1. Relativismo: em que consiste?
O relativismo é a recusa de qualquer proposição filosófica ou ética de valor universal e absoluto. Tudo o que se diga ou faça é relativo ao lugar, à época e demais circunstâncias nas quais o homem se encontra. No setor da filosofia não se poderia falar da verdade ou erro-falsidade, como na área da Moral não se poderia apregoar o bem a realizar e o mal a evitar. O homem (indivíduo) seria a medida de todas as coisas, como já dizia o filósofo grego Protágoras. Em conseqüência o comportamento do homem ignora a lei natural, que é a lei de Deus incutida a todo ser humano desde que ele dispõe do uso da razão; da mesma forma a sociedade só conhece e respeita as leis que os seus governantes lhe propõem sem questionar a consonância dessas leis (ditas “positivas”) com a lei do Criador: por conseguinte, se as leis dos governantes legalizam o aborto, a clonagem, o anti-semitismo..., a população lhes obedece, não levando em conta que, antes da palavra do legislador humano, existe a do Legislador Divino, que é a mesma para todos os homens.
Os comentadores dessa situação chegam a falar de uma “ditadura do relativismo”, contra a qual não há como apelar para uma instância ulterior, mas elevada ou mais profunda. A essa ditadura aludia o então Cardeal Joseph Ratzinger aos 18 de abril de 2005 na homilia da Missa preparatória do conclave:
Baseando-se em Ef 4, 14 (“não vos deixeis sacudir por qualquer vento de doutrina”), advertia o pregador: “Quantos ventos de doutrina viemos a conhecer nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantas modalidades de pensar...! O pequeno barco do pensamento de não poucos cristãos foi freqüentemente agitado por essas ondas, lançado de um extremo para o outro: do marxismo ao liberalismo ou mesmo libertinismo, do coletivismo ao individualismo radical, do ateísmo a um vago misticismo religioso, do agnosticismo ao sincretismo... Todos os dias nascem novas seitas e se realiza o que diz São Paulo sobre a falsidade dos homens, sobre a astúcia que tende a atrair para o erro (Ef 4, 14). O ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, é muitas vezes rotulado como fundamentalismo. Entrementes o relativismo ou o deixar-se levar para cá e para lá por qualquer vento de doutrina aparece como orientação única à altura dos tempos atuais. Constitui-se assim uma ditadura do relativismo, que nada reconhece de definitivo e deixa como último critério o próprio eu e suas veleidades”.
Assim é posta de lado a metafísica, de acordo com a advertência de Ludwig Wittgenstein: “É preciso não falar daquilo que a mente do homem não atinge”.
Examinemos sumariamente algumas modalidades do relativismo:
1.1. Relativismo filosófico
1.1. Relativismo filosófico
Não se pode pretender chegar a uma verdade objetiva, pois a mente humana não conhece a realidade como ela é, mas como o sujeito a consegue enquadrar dentro dos seus parâmetros de pensamento. A verdade portanto não é aquilo que a filosofia clássica ensina (conformação do intelecto com a realidade em si), mas, ao contrário, é a conformação da realidade com o intelecto. A verdade assim é algo de subjetivo, pessoal, em vez de ser objetiva e universal, para todos os homens. Já que não há um intelecto só para todos os homens, mas cada qual tem seu intelecto, diverso do intelecto do próximo ou mesmo oposto a este, em conseqüência há muitas verdades. Cada um tem a sua própria verdade.
1.2. Relativismo ético
Não existem normas morais válidas para todos os homens; os valores éticos variam de acordo com as fases da história e das culturas; há normas e opiniões subjetivas, que o indivíduo formula para si mesmo, fazendo uso da sua liberdade, que é refreada apenas pelos limites que os direitos alheios lhe opõem.
O relativismo assim descrito conhece um único absoluto, a saber: o ser humano ou, mais precisamente, a liberdade de cada ser humano. Essa liberdade é indiscutível .
Pergunta-se agora:
2. Quais as causas do fenômeno relativista? Apontaremos cinco causas:
2.1. Filosofia imanentista
2.1. Filosofia imanentista
Imanência opõe-se a Transcendência. Significa a negação de todo valor que esteja além do alcance da experiência humana. Ora o relativismo contemporâneo é ateu; vê na religião e na Moral católicas um obstáculo e um adversário, pois Deus parece escravizar o homem e a Moral católica parece destinada a tornar o homem infeliz ou cerceado. Como pode o ser humano levar Deus em conta, já que todo tipo de conhecimento não é senão uma “representação” mental e subjetiva?
2.2. O historicismo
O historicismo ensina que “tudo é histórico” ou provisório e variável; o que ontem era importante, hoje deixa de ser tal. Ora a verdade é conhecida e vivida na história, sujeita a contínuas mudanças; ela é “filha do seu tempo”. Tudo o que é verdadeiro e bom é tal unicamente para o seu tempo, e não de modo universal, para todos os tempos e todos os homens. Nenhuma cultura tem o direito de se julgar melhor do que as outras; todos os modos de pensar e viver têm o mesmo direito.
2.3. O contínuo e insaciável progresso
Apesar de todas as dificuldades e hesitações por que passa a ciência, há quem julgue que ela trará ao homem as almejadas respostas; proporcionará um crescente bem-estar, porque desvinculadas de qualquer ligação religiosa ou moral. Tenha-se em vista a teoria da evolução, que deu início à nova concepção da humanidade,... a época das luzes, que sucedeu ao “obscurantismo” medieval... os regimes democráticos, que tomam o lugar do ancien regime ou da monarquia absoluta dos reis...
2.4. O ceticismo
O ceticismo ensina que não há verdades objetivas e normas morais sempre válidas e que, mesmo que as houvesse, o homem não seria capaz de as apreender. Na época moderna, o ceticismo desponta com René Descartes (+ 1650), que propõe a “dúvida metódica” e vai dominando o pensamento posterior sob formas diversas: agnosticismo, empirismo, positivismo de Augusto Comte, fideísmo, “o pensamento fraco” (como dizem).
O relativismo é marcado também pelo ceticismo. A verdade é pragmática, prática: são verdadeiras e válidas as teorias que levam a resultados concretos satisfatórios; se determinada concepção resolve (ao menos aparentemente) um problema concreto, é tida como verídica e ponto de referência para o comportamento humano.
2.5. O utilitarismo
Associado ao ceticismo, o utilitarismo só aceita o que pode ajudar a viver em certo bem-estar aqui e agora. Tal bem-estar é geralmente hedonista, ou seja, avesso ao sacrifício, à renúncia, ao incômodo e tem por programa: “Maximizar o prazer e minimizar a dor”.
Exposto sumariamente o que seja o relativismo, resta perguntar:
3. Como diante dele se situa a Igreja?
Responderemos em duas etapas
3.1. A Igreja não é fundamentalista
Responderemos em duas etapas
3.1. A Igreja não é fundamentalista
O fundamentalismo é uma atitude que teve origem no ambiente protestante dos Estado Unidos na segunda metade do século XIX: apega-se ferrenhamente a certas proposições da Bíblia e não permite que sejam estudadas à luz das pesquisas lingüísticas e arqueológicas modernas, pois a ciência poria em perigo a fé. Portanto professa a criação do mundo em seis dias de 24 horas; Moisés seria o autor do Pentateuco tal como chegou até nós; o livro de Daniel terá sido escrito por inteiro nos tempos de Nabucodonosor (século VI a.C.)... O mundo moderno é dominado por Satanás, que Jesus derrotará definitivamente quando vier (e talvez venha em breve) a julgar os homens.
Fundamentalista é, por exemplo, a atitude do Islã, que propõe:
1) o Corão é livro divinamente inspirado e deve ser entendido ao pé da letra;
2) o Islã deve reger as leis do Estado, pois todos devem conformar-se aos preceitos de Alá.
O fundamentalismo, aliás, também penetrou em outras correntes religiosas, como o Judaísmo e o próprio Cristianismo (em alguns de seus setores).
Há também o fundamentalismo leigo, não religioso, principalmente no campo da política, quando se procura impor à sociedade o fanatismo de um chefe “carismático” e tirânico.
Pois bem; a Igreja não é fundamentalista. Ela aceita e promove os estudos bíblicos voltados para a lingüística, à arqueologia, a paleontologia... Professa que a Bíblia é inspirada por Deus, que utilizou formas de pensamento antigo e oriental para se revelar. A Igreja reconhece que, fora dela, existem valores suscitados pelo próprio Deus ou, como diziam os Padres da Igreja, existem “sementes do Verbo” (logoi spermatikói); cf. Declaração Nostra Aetate nº 2 do Concílio do Vaticano II. Professa outrossim a liberdade religiosa ou o direito que todo ser humano tem de estudar livremente a questão religiosa e viver de acordo com suas conclusões sem ser coagido a abraçar algum Credo que violente a sua consciência, nem adotar o ateísmo; ver Declaração Dignitatis Humanae do Concílio:
“2. Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Consiste tal liberdade em que todos os homens devem ser imunes de coação, tanto por parte de pessoas particulares, quanto de grupos sociais e de qualquer poder humano, de tal modo que, em matéria religiosa [in re religiosa], ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem seja impedido de agir de acordo com ela, em particular e em público, nem só ou associado a outros, dentro dos devidos limites.
Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa está realmente fundado na própria dignidade da pessoa humana, tal como é conhecida tanto pela palavra revelada de Deus como pela própria razão. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa deve ser de tal forma reconhecido no ordenamento jurídico da sociedade que se transforme em direito civil”.
Para evitar mal-entendidos, seja dito: o Concílio apregoa a liberdade para pesquisar o problema religioso. Essa pesquisa, porém, é obrigatória, pois se trata de dar sentido à vida; se Deus existe, o rumo é um; se não existe, o rumo é outro. Ninguém está autorizado a fugir dessa pergunta: Deus existe? ...Mas pesquise sem sofrer coação.
Há portanto um meio-termo entre o fanatismo cego fundamentalista e o relativismo. Quem não é relativista, não é necessariamente fanático.
3.2. A Igreja professa a Verdade Absoluta
A inteligência humana foi feita para a Verdade e não para a penumbra das semi-verdades ou do erro. O homem aspira naturalmente à Verdade; esta aspiração congênita não pode ser frustrada num mundo em que as demandas têm sua resposta; com efeito
- para o olho, há a luz para a qual ele foi feito.
- para o ouvido, há o som.
- para os pulmões, há o ar.
- para o estômago, há o alimento.
Não haveria então resposta para as aspirações mais elevadas do ser humano à Verdade e ao Bem?
A Igreja sabe que a Palavra de Deus revela com veracidade quem é Deus e qual o seu plano de salvação. Fora das verdades da fé, julga que o homem, pesquisando através de altos e baixos, pode chegar ao conhecimento da Verdade Absoluta.
O fato, porém, de professar a Verdade Absoluta não deve tornar o fiel católico cego e fanático. Sim; muitos seres humanos podem estar professando o erro, julgando que o erro é a verdade; estão de boa fé numa fé (ou religião) errônea. Deus não lhes pedirá contas daquilo que Ele não lhes revelou, mas há de julgá-los de acordo com os ditames da sua consciência que, sincera e candidamente, os impelia ao erro.
É o que ensina o Concílio do Vaticano II em Lumen Gentium nº 16.
“O Salvador quer que todos os homens sejam salvos. Aqueles portanto que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas de coração sincero buscam a Deus e se esforçam, com o auxílio da graça, por cumprirem com obras a sua vontade conhecida pela voz da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna. A Divina Providência não recusa os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram com a graça divina viver retamente”.
Há um só Deus para todos os homens; Ele distribui suas luzes sobre todo indivíduo como lhe apraz e não pede mais do que a justa resposta da criatura à Palavra que o Senhor lhe comunica.
Ao proclamar a verdade absoluta, a Igreja não ignora a influência, às vezes prejudicial, das culturas na formulação dos juízos religiosos e éticos de cada indivíduo, mas os católicos crêem que esses possíveis obstáculos e desvios podem ser corrigidos pela insistência de quem procura sinceramente.
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